“Entrevista com a professora e mestre com dissertação sobre a obra de Jane Austen, Renata Colasante

Em suas tentativas de encontrar traduções para o português que servissem de fonte ao trabalho de mestrado intitulado A Leitura e os Leitores em Jane Austen, defendido em 2006 pela Universidade de São Paulo (USP), a professora Renata Colasante esbarrou na escassez de edições brasileiras da obra de Jane Austen. E na baixa qualidade das traduções disponíveis no país.

Mansfield Park, seu principal objeto de desejo, foi também dos mais complicados de achar. A única versão nacional, traduzida por Rachel de Queiroz, está esgotada. “Esse livro sumiu”, diz a estudiosa, que foi encontrar um exemplar no Museu da Independência de São Paulo. Esperava uma tradução à altura da escritora que a realizou, mas se deparou com uma “muito ruim”: erros e trechos suprimidos. “Perde-se muito nas traduções. Precisariam ser feitas por alguém que conhecesse bem o estilo da Jane Austen. A maior dificuldade é a questão da forma”.

A especialista teve a chance de experimentar o desafio ao traduzir os dois primeiros capítulos de Mansfield Park a pedido de uma grande editora, que cogita, a partir dessa amostra, relançar o livro – sem garantias, infelizmente, de que isso aconteça. É lamentável a falta de opções para entrar em contato com o universo da autora inglesa (a editora Landmark colocou no mercado edições bilíngües de “”Orgulho e Preconceito”” e “”Persuasão”” e planeja lançar, no mesmo formato, os outros quatro romances completos). Renata Colasanti, porém, na entrevista abaixo, torna-o um pouco mais próximo.

Gazeta do Povo – Os livros de Jane Austen datam da virada do século 18 para o 19. Ainda assim, não apenas continuam a ser lidos, como influenciam outras obras. O que torna a autora atual, capaz de repercutir ainda hoje?

Embora o mundo de Jane Austen pareça à primeira vista restrito à Inglaterra da virada do século, os temas que a autora tratou são absolutamente atuais. O mais evidente, a dificuldade nas relações humanas, especialmente do ponto de vista feminino, é recorrente em sua obra.

Grandes sucessos do cinema foram releituras, independente de sua qualidade, de romances de Jane Austen. Há ainda um exemplo de grande relevância. Ian McEwan, o renomado autor de Reparação, também declara ter baseado sua história, em parte, e, principalmente, sua personagem principal, Briony, em Catherine Morland, heroína de A Abadia de Northanger. São exemplos do quanto a obra da autora ainda nos tem a dizer. Embora as pessoas prestem muita atenção nas relações pessoais, elas são na verdade secundárias para Jane Austen. Há outros temas importantes em sua obra que devem ser notados e dizem respeito às relações sociais. Jane Austen é exata na descrição que faz da sociedade burguesa de sua época e desigualdades, exploração, preconceitos, hipocrisia, relações de dinheiro etc são coisas que fazem parte de nossa sociedade até os dias de hoje.

Pelo seu conhecimento da (escassa) biografia da autora, o que teria permitido que ela avançasse em relação às realizações que “cabiam” a uma mulher do seu tempo?

Jane Austen, a exemplo de suas heroínas, também passa pela experiência de ser uma mulher que, embora burguesa, não possui uma herança, ficando obrigada a ou realizar um bom casamento ou viver à custa de um homem da família – no caso da autora, seu irmão. Dentro de uma sociedade em que a mulher não tem muito poder de escolha e precisa do casamento para garantir sua própria sobrevivência e posição social, é admirável, de fato, que a autora tenha escolhido não se casar para seguir uma carreira literária. Dados biográficos confiáveis são escassos, embora o número de obras biográficas escritas sobre ela chegue a várias dezenas. Há uma fonte bastante importante de dados sobre a autora: uma coleção de cartas enviadas à sua irmã Cassandra, posteriormente publicadas. Creio que a partir das cartas podemos concluir alguns fatos que certamente influenciaram sua decisão. O principal está na educação recebida. O pai de Jane Austen não era um homem rígido no sentido mais restrito e incentivava entre os filhos o hábito da leitura. Jane Austen era uma grande leitora, era culta e tinha um senso crítico bastante desenvolvido. Sua escrita de ficção foi desde muito cedo incentivada pelos familiares e creio que sua paixão pela literatura e seu talento foram decisivos para que ela não optasse pelo casamento, o que significaria o abandono da escrita. Jane Austen é comumente citada como a segunda autora mais importante de língua inglesa, abaixo apenas de Shakespeare. O que a distingue entre outros grandes nomes daquela literatura?

Shakespeare extrapolou as barreiras do tempo e do espaço geográfico. A projeção mundial de Austen é bem menor. No Brasil, apenas mais recentemente nota-se um interesse maior por suas obras e advém do público que toma contato pelo cinema. Talvez isso se deva a desinteresse de editoras em traduzir e publicar os romances aqui. Em países de língua inglesa, contudo, de fato, ela é considerada a segunda autora mais importante e um reflexo disso são os mais de 300 livros que já foram escritos sobre ela e sobre seus romances. Austen foi a precursora do discurso indireto livre. Além disso, ela une em sua forma narrativa as características de duas vertentes do romance do século 18: Os romances de Samuel Richardon eram epistolares, ou seja, eram escritos em forma de cartas, priorizavam o espaço doméstico e apresentavam maior adensamento psicológico. Já Henry Fielding inaugura um estilo em o leitor se familiarizaria com a interioridade da personagem através de suas ações, já que a caracterização é mais superficial. Jane Austen funde estas duas correntes do romance inglês em sua obra e cria um novo modo de narrar, dando um passo adiante na história do gênero e abrindo as portas para que o romance passasse pelas mudanças por que passou no século 19.”

GAZETA DO POVO (PR)