“Lançada no Brasil edição bilíngüe de “”O Último Homem””, obra-prima da escritora inglesa Mary Shelley
De Mary Shelley (1797-1851) todo mundo conhece – ou pelo menos ouviu falar de “”Frankenstein ou O Prometeu Moderno””. Em seu tempo, contudo, não foi essa a obra da autora que chamou a atenção dos críticos. O status de obra-prima foi reconhecido a “”O Último Homem””, que chegou recentemente ao Brasil em edição bilíngüe. O livro foi publicado em 1826, oito anos depois de “”Frankenstein””, e constitui uma síntese não apenas do pensamento romântico, mas da forma como o círculo de artistas próximos da escritoria o abordava.
Talvez por isso soe quase estranho o fato de que, volta e meia, algum pesquisador apresenta “”O Último Homem”” como ficção científica. A ação se passa no século 21, mas qualquer pessoa percebe a lógica do romance e das personagens é do século 19 – o tempo, aqui, não é uma projeção rumo ao futuro, apenas um artifício narrativo. Mary Shelley nem ao menos se propõe a construir uma antecipação política – os debates de que trata em sua Inglaterra que teria acabado de abolir a monarquia são, essencialmente, os debates que marcaram a virada dos séculos 18 e 19 no país, entre correntes democráticas e aristocráticas, idéias republicanas e monárquicas, conservadores e liberais. George III que governara a Inglaterra enlouquecera em certo momento do seu reinado, o que juntamente com uma crise constitucional, por pouco não conduziu o país à república – logo no início de “”O Último Homem””, a monarquia é abolida, e ao longo do romance as personagens sempre são obrigadas a se posicionar frente a esse fato. O olhar da autora sobre a política internacional é o de sua época: em diversas passagens o romance se alimenta da disputa entre gregos e turcos – ela foi contemporânea da guerra de independência da Grécia, onde morreu um de seus mais íntimos amigos, o escritor George Byron.
O FIM
Os mesmos críticos justificam a apresentação de “”O Último Homem”” como obra de ficção científica no fato de que o livro narra o fim da humanidade. Por volta da metade do romance, notícias de uma epidemia começam a chegar da região da guerra. Aos poucos, a praga vai se espalhando pelo mundo, até dizimar quase toda a humanidade – Lionel Verney, o último sobrevivente, é o narrador da história. Ao contrário do que ocorre na ficção científica de caráter apocalíptico, contudo, o que interessa à Mary Shelley não são os esforços para compreender e combater a doença, nem o olhar sociológico sobre as transformações sofridas pela civilização. O foco de “”O Último Homem”” é o coração, os sentimentos que acometem os heróis naquele momento de fuga, perplexidade, luta.
Sintomaticamente, não há diferença substancial entre os capítulos de “”O Último Homem”” anteriores à epidemia e os que se seguem ao advento dela. O tempo todo, o leitor vai encontrar alianças e separações, ódios intensos que se transformam em grandes amores (e vice-versa), quedas que resultam em redenç]ão. Mary Shelley é romântica até o fundo de sua alma. Seus heróis são completamente idealizados – todos jovens, geniais, intensos em todas as suas ações. Quem não é estonteamente belo no início do livro se tornará belo no contato com o amor. Quem não é bom, encontrará, em algum momento, sua bondade. Todos se redimem pelo amor, pela renúncia e pela morte.
A doença sem nome é metafórica. Mary Shelley, mais do que falar do fim da humanidade ou do mundo, trata do fim de seu mundo. À praga do livro correspondem os novos tempos que avançavam pela Europa, que, se traziam ventos de liberdade e igualdade, derrubavam em seu caminho modos de viver mais simples, formas de criar, relações mais humanas. A burguesia em ascensão espezinhava valores caros à autora e impedia o avanço do socialismo que, mesmo numa forma ingênua, ela e seu grupo dependiam.
ANCIÃ AOS 29 ANOS
Em 1826, Mary Shelley já se via como uma anciã – mesmo tendo apenas 29 anos. Assistira ao colapso do mundo em que nascera, vira a Inglaterra invadida por hordas de descontentes com a Revolução Francesa. Acima de tudo, perdera as pessoas que mais havia amado: o marido Percy Shelley (1792-1822) e amigo George Byron (1788-1824). Não é difícil perceber, em “”O Último Homem””, um fundo autobiográfico por trás da ficção. No livro, Adrian, o herdeiro do trono britânico, parece flutuar acima do solo, viver num mundo de poesia e beleza bem distante do nosso – traços que geralmente eram atribuídos a Percy, que como herói, morreu afogado num naufrágio. Lorde Raymond, outra das personagens, só consegue existir na sociedade nos momentos em que vivencia a paixão, e morre na frente de batalha, lutando pelos gregos – difícil não perceber as semelhanças entre a personagem e Byron.
Acima de tudo, “”O Último Homem”” reflete a paixão de Mary Shelley pela arte e a cultura. Lionel Verney passa de vilão a herói quando Adrian o aproxima das idéias dos filósofos e da criação dos escritores. No livro, a arte redime o homem, como redimira a própria autora e seus amigos. Conduz à boa política, à boa existência, e, quando fruidas em conjunto, todas levam à felicidade, mesmo se momentânea. Os instantes de sofrimento nessas condições representa, ao menos, grandeza. A única coisa inaceitável é o sentimento pequeno – como todo os heróis românticos, as personagens de Mary Shelley conhecem o céu e o inferno, mas nunca encontram estados intermediários, medianos e medíocres.
Essa paixão não é apenas conteúdo de “”O Último Homem”” – espalha-se também por sua estrutura. Como seus contemporâneos, a autora volta e meia interrompe a ação para fazer citações a seus escritores e pensadores prediletos. Não esconde o fascínio por seus ídolos, como Shakespeare. Aliás, em alguns momentos, chega a centímetros do plágio: a descrição da loucura de Adrian, por exemplo, é ostensivamente calcada no relato sobre a insanidade de Ofélia, em “”Hamlet””. É essa intensidade que transforma “”O Último Homem”” em algo arrojado: Mary Shelley sintetiza o olhar de uma geração que não conheceu meios-termos.
Por Marcello Castilho Avellar”ESTADO DE MINAS