“Alécio Cunha Repórter Nome fundamental da língua e literatura inglesas, o poeta metafísico John Donne (1572-1631) é pouco conhecido no Brasil, embora tenha sido traduzido por nomes como Péricles Eugênio da Silva Ramos, no final dos anos 70, em antologias publicadas pela extinta editora Philobiblion, e por Augusto de Campos, cuja versão de «Oração Ao Tempo» foi, inclusive, musicada pelo baiano Caetano Veloso. A editora paulista Landmark vem preencher esta lacuna com a publicação das «Meditações», obra seminal de Donne, em versão bilíngüe com tradução de Fábio Cyrino, um apaixonado pelos versos vitais do poeta inglês. «A importância de John Donne, finalmente, vai ser apresentada ao público brasileiro em uma extensão mais ampla. Ele é contemporâneo de nomes como William Shakespeare e, assim, como Shakespeare, sua literatura possui uma força atemporal. Seus textos, embora escritos no século XVII, são contemporâneos e suas lições servem a nós, em pleno século XXI», frisa o tradutor. Para Cyrino, a volta de Donne às estantes das livrarias possui um significado especial. «Muita pouca gente, principalmente as novas gerações de leitores, conhecem realmente seu trabalho. As pessoas nem imaginam que Ernest Hemingway tirou o título de um de seus romances mais populares, «Por Quem Os Sinos Dobram», de um texto de Donne. Nem que expressões hoje populares como ’nenhum homem é uma ilha’ foram ditas primeiro por ele», conta. Na visão de Fábio Cyrino, as «Meditações» ocupam um lugar muito especial na geografia literária de Donne. «É uma obra que apresenta de um modo poético e complexo uma ampla reflexão de todas as características metafísicas de uma produção literária vasta», afirma. Donne é, antes de mais nada, um poeta que reflete sobre as coisas do espírito, embora utilize o corpo como objeto reflexivo tanto da fé quanto da dúvida. O tradutor lembra que Donne escreveu seus textos meditativos, uma excelente combinação entre poesia e prosa, como parte de uma obra maior, as «Devoções Para Ocasiões Emergentes», trabalho que transcende o caráter religioso e é impregnado de aura simultaneamente existencialista e humana. «Elas foram redigidas quando Donne estava gravemente doente e publicadas em 1624», conta Cyrino. Para o responsável por verter à língua portuguesa o lirismo peculiar de John Donne, «Meditações» vem ao lume em um momento crucial do percurso estético do poeta inglês. «Talvez o ponto mais marcante da literatura do século XVII ocorra quando o estilo de Donne muda da poesia amorosa para a poesia secular e religiosa produzida na maturidade, transformando-se através de suas afirmações fortes e filosóficas sobre a profundidade de reflexões em torno do sentido da vida e da morte», explica. Fábio Cyrino observa que, a partir deste momento, John Donne torna-se um poeta metafísico, cujo principal objetivo foi proporcionar aos seus leitores uma maneira de entrar em um «paraíso idealizado através de suas reflexões profundas». Vejam a seguir este exemplo da contundência do pensamento do poeta inglês, eternizado depois através do senso comum e da propagação de frases soltas por meio da força da oralidade. «Nenhum homem é uma ilha, inteiramente isolado; todo homem é um pedaço de um continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de seus amigos ou o seu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntai: Por quem os sinos dobram? Eles dobram por vós», escreveu Donne. A célebre meditação, que serviu de inspiração para o título do romance de Ernest Hemingway, também ganhou popularidade através da propagação cinematográfica, no caso o sucesso do filme «Por Quem Os Sinos Dobram», estrelado por Gary Cooper, Ingrid Bergman e Katina Paxinou, passado durante a Guerra Civil Espanhola. «Os sinos tinham uma importância simbólica na sociedade em que Donne vivia, pois avisavam a comunidade dos eventos que aconteciam naquela época, especificamente a saída dos cortejos fúnebres. John Donne estava incerto de tudo na vida. Era um jovem poeta despedindo-se da vida antes de entrar em um mundo espiritual. Aliás, esta é a principal mensagem das ’Meditações’, a obra máxima de Donne», afirma Fábio Cyrino. Na visão do tradutor, a tarefa de trazer Donne ao português não foi tão difícil. «Quando havia, alguma dificuldade, cotejei versões em francês e em espanhol. É muito gostoso traduzir o inglês da época de Donne, uma língua em formação. Mas eu me policiava sempre, pensando no bordão de que que traduzir pode ser trair. Não traí ninguém», garante. Cyrino compara parte do estilo de Donne ao espírito reflexivo do baiano Gregório de Mattos, também conhecido pela alcunha de «boca do inferno», um autor sem papas na língua, sobretudo em sua ácida vertente satírica. «Donne e Gregório viveram na mesma época, respiram os mesmos ares, embora em culturas distintas», salienta o tradutor. A editora Landmark prepara até o final do ano outras atrações para a coleção bilíngüe de clássicos, da qual as «Meditações» fazem parte. Estão previstas traduções de obras das irmãs Charlotte e Emily Bronté, como «Jane Eyre» e «O Morro Dos Ventos Uivantes», Jane Austen e Oscar Wilde. «Meditações». De John Donne. Tradução: Fábio Cyrino. Editora Landmark, 144 páginas, R$ 24,50. TRECHO Das «Meditações», de John Donne «Tudo na natureza é como a caixa que contém dentro dela outra menor, e a essa, outra menor ainda: o céu contém a terra, cidades; as cidades, os homens. E tudo isso é concêntrico: o centro comum a todos eles é a decadência, a ruína: somente o que nunca foi criado é excêntrico, somente aquele lugar ou, de outro modo, aquele acessório, que podemos imaginar, mas não demonstrar. A luz, que é a verdadeira emanação da luz de Deus, na qual os santos residem, com a qual os santos se revestem, é o único ponto que não está no centro, o da ruína: pois ela, não tendo consistência, não está fadada a esta aniquilação» ”

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