“O inglês John Donne (1572-1631) é de um tempo em que escrever acerca de temas religiosos não era sinônimo de mediocridade literária, picaretagem mercadológica ou aquilo que se chama de auto-ajuda. “Meditações”, uma de suas principais obras, acaba de ganhar um tradução tardia para o português – e põe tardia nisso, já que a edição original da obra data de 1624. A temática gira em torno a transitoriedade da vida e a preparação do espírito humano para o encontro com o criador. Apesar da demora, a obra ganhou um tratamento raro aos textos clássicos aqui no Brasil. A edição é bilíngüe, trazendo o texto original ladeado pela versão caprichada assinada pelo tradutor Fabio Cyrino. “Meditações” faz parte de uma obra maior de John Donne – “Devoções para ocasiões emergentes”. A obra reúne 23 textos curtos, escritos durante uma grave enfermidade que se abateu sobre o poeta. Como a maioria de seus pares na época, John Donne acabou ofuscado pelo gigantismo da obra de William Shakespeare (1564 – 1616), grande nome da literatura do período. Entretanto, Donne é merecedor de uma boa revisão, principalmente no Brasil, onde recebeu pouca atenção. Em seu tempo, foi um dos principais poetas da temática metafísica e famoso teólogo. Pensador ousado, chegou a escrever um ensaio sobre o suicídio, livrando aquele que comete o ato do pesado julgamento que ainda hoje a Igreja Católica o impõe. Entre suas principais obras, se destacam “Sátiras” e “Devoções para ocasiões emergentes”, no qual figuram os textos de “Meditações”. Criar e recriar Escritas há quase 400 anos, as meditações de John Donne se impõem como um desafio ao tradutor. Por um lado, o autor escreve em um inglês arcaico, com palavras que se perderam no tempo. Por outro, o poeta faz parte de uma geração que inventou a forma moderna do idioma, que forneceu as bases para o que ainda se fala hoje. “Na época da obra, o inglês estava em formação. Há quem diga que 40 % do inglês, parecido com o que se fala hoje, surgiu nas obras de Shakespeare. Em suas peças, ele criava muitos neologismos. Com o John Donne aconteceu mesma coisa”, explica Fabio Cyrino, tradutor do poeta metafísico. O potencial criativo de Donne é, exatamente, um dos principais obstáculos a quem se aventura na tarefa de recriá-lo em outro idioma. “Ele se valia de palavras de outras línguas. Então, muitas vezes você não encontra a palavra certa no inglês. Precisa procurar em outros idiomas uma que mais se aproxime do propósito do texto original”, explica o tradutor. Em seu processo de recriação das meditações de Donne, Cyrino não se valeu de um recurso comumente utilizado pelos tradutores: a comparação com outras traduções, tanto do mesmo idioma, quanto estrangeiras. Se tivesse optado por esse método, não teria encontrado grande coisa no Brasil. Aqui, Donne é mais conhecido pela meditação de número 17. Nela, está célebre passagem “(…) não se perguntai: por quem os sinos dobram; eles dobram por vós” – da qual Ernest Hemingway tomou emprestado o título de um de seus romances mais famosos. “Preferi buscar em outras línguas próximas um correspondente que melhor se encaixasse. Os mais puristas devem reclamar”, comenta. Fabio Cyrino não se diz preocupado com a “ousadia” de colocar sua transcriação, literalmente, lado a lado com as palavras originais de John Donne. “A tradução é um trabalho de adaptação. Um tradutor que admiro bastante, o português Graça Moura, cria novamente o texto, de forma poética, e sem perder a raiz dos autores”, avalia. Ao invés de consultar outras versões da obra em que se debruça, Cyrino prefere estudar as soluções de alguns mestres brasileiros na arte de traduzir. Entre eles, Machado de Assis e Millôr Fernandes. Editora se especializa em versões bilíngües Não há leitor veterano que não tenha se irritado com algum erro grosseiro de tradução. Irritam, em especial, aqueles que, mesmo que ignorando por completo a língua da versão original, sejam perceptíveis. É verdade que há tradutores inábeis (mais do que deveria). Entretanto, há obstáculos, por vezes insuperáveis, encontrados na transcriação de qualquer obra. Nesse caso, há duas saídas: ou se esquece a tradução e se faz a leitura direto no original ou, para aqueles que não são fluentes nas línguas estrangeiras, as edições bilíngües. Pouco explorado no Brasil, o formato de pôr lado a lado o texto original e sua transcriação é uma das apostas da editora paulista Landmark. De 2002 para cá, a editora já colocou no mercado “Os Sonetos Completos”, de William Shakespeare; “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri; “A Volta do Parafuso”, de Henry James; e “Contos Completos”, de Oscar Wilde. Todos esses em novas traduções. Além de “Meditações”, até então inédita no país, a editora promoveu o debut de “As Crônicas do Brasil”, do britânico Rudyard Kipling. “A editora ainda é nova. Nesse período, temos nos dedicado a trazer novas traduções para obras significativas ou que tenham apelo especial para o leitor brasileiro. Sempre temos essa preocupação. Todo ano, nosso conselho faz uma seleção e foi assim que cheguei até as ‘Meditações’, de John Donne”, explica o tradutor Fabio Cyrino, um dos editores da Landmark. Se, do ponto de vista comercial, a edição bilíngüe é um diferencial de mercado, do ponto de vista da tradução, significa mais pressão sobre o tradutor. “Quando se toma a decisão de colocar o original ali, colado com o texto que você produziu, aumenta sua responsabilidade”, conta. Novas edições Até agora, a editora colocou sete livros bilíngües no mercado. Outros nove devem ser lançados até o final do ano. Entre os títulos já definidos, estão inéditos de Jane Austen, das irmãs Charlotte e Emily Brontë (ambos para junho) e, em outubro, de L. Frank Baum (criador do de “O Fantástico Mágico de Oz”). DELLANO RIOS Repórter”

DIÁRIO DO NORDESTE