“Autora de ‘Frankenstein’, Mary Shelley constrói um futuro pós-apocalíptico em ‘O último homem’ Por Doris Miranda Provavelmente, Mary Shelley (1797-1851) não tinha muita noção, mas estava criando o que se chama hoje de ficção pós-apocalíptica quando concebeu seu segundo livro, O último homem, publicado na Inglaterra em 1826, na época dividido em três volumes. Exatamente o mesmo título, inédito no Brasil, que chega às livrarias pela editora Landmark, numa edição bilíngüe (inglês/português), considerado o romance precursor do gênero que retrata o fim da civilização por meio de alguma catástrofe. Nesse caso, uma praga que extermina toda a população do planeta, deixando somente um sobrevivente para contar a história. Muito mais conhecida como autora do clássico Frankenstein, uma das mais tristes narrativas de terror/ficção científica (ela também foi pioneira nisso), Shelley teve seu O último homem ofuscado pela saga da criatura vivificada pelo obsessivo doutor Victor Frankenstein. Trabalho dos editores ou preferência do público – sabe-se lá o motivo.

A verdade é que O último homem, cuja narrativa também acontece em primeira pessoa, como no outro livro mais famoso, é sensacional. Ambientada no século XXI, a história é contada como as memórias de Lionel Verney, o único sobrevivente da Terra, desde o seu nascimento até os últimos momentos da humanidade, destruída por uma devastadora doença. Naturalmente imune ao mal, ele testemunha a morte gradual de todas as pessoas à sua volta. O leitor vai percebendo isso aos poucos, depois que Shelley apresentou todos os fatos que achou relevante para prender a atenção do público. Até o clímax da história, quando a população começa a morrer e Verney vivencia dias de verdadeiro terror, a autora percorre um longo caminho, entremeado por tramas paralelas envolventes, disputas de poder político, amores ardentes e até uma guerra. O que se ganha com isso? Um mergulho profundo nos meandros da alma de personagens ricos, como os fictícios Conde Adrian e Lorde Raymond, baseados, respectivamente, em seu marido, Percy Shelley, e o amigo Lorde Byron, ambos poetas famosos. Há também a personagem Clara, filha de Lionel Verney, batizada com o mesmo nome da primeira filha de Mary com Percy, que morreu pouco depois de nascer prematura e doente. Mas a idéia central do romance é a solidão. O último homem não é apenas uma trama de ficção científica baseada num argumento até bastante palpável numa época em que a medicina ainda não tinha recursos para conter vírus e bactérias aterrorizantes.

O livro, que influenciou H.G. Wells, Isaac Asimov e Arthur C. Clark, pode ser compreendido como metáfora para o próprio estado de espírito da autora, exaurida após suas próprias perdas pessoais. Além da filha, morta em 1816, Mary Shelley perdeu o marido em 1822 e o amigo Byron, dois anos mais tarde. Todos antes do livro ser publicado, que saiu nove anos após Frankenstein. O último homem é um conto de fadas para adultos, sem a nuvem cor-de-rosa que envolve os livros do gênero ou o peso filosófico que o tema lhe exigiria. Mary Shelley acerta na medida, criando um livro que reflete os anseios de sua época. A visão de futuro descrita por ela surge a partir de manuscritos proféticos, supostamente encontrados pelo protagonista em uma caverna em Nápoles, na Itália, e nos quais é apresentado o fim da humanidade. Esses escritos seriam as folhas da Sibila de Cumas, personagem da mitologia grega que anotava o que o deus Apolo lhe sussurrava sobre os fatos do porvir. Curioso é que a descrição desse futuro distante é marcada pelo investimento no balonismo como representação do progresso científico, apresentado como principal meio de transporte do século XXI. Afora isso, nada de invencionices ou tecnologias absurdas. Feminismo – Além de romancista, Mary Wollstonecraft Shelley foi também editora e biógrafa. Tornou-se conhecida pela obra Frankenstein, o Prometeus moderno, de 1818, publicado quando ela tinha 21 anos, embora tenha começado a escrevê-lo aos 19. Uma das primeiras feministas de Londres, Shelley escreveu A reivindicação dos direitos da mulher e Os erros da mulher. A luta social vinha de dentro de casa: seu pai, um teórico anarquista, era o escritor e jornalista político William Godwin, que se tornou famoso pela obra Uma investigação concernente à justiça política (1793). Durante a infância, Mary foi educada entre os intelectuais que participavam de círculo de amizades da família, como o crítico Hazlitt, o ensaísta Lamb, os poetas Coleridge e Percy Bysshe Shelley, com quem viria a casar mais tarde. Mary publicou seu primeiro poema aos 10 anos. Aos 16, fugiu para a França e Suíça com Shelley. Casaram-se em 1816, após o suicídio da primeira mulher dele. Tiveram uma filha, que faleceu pouco depois em Veneza. Depois, voltaram à Inglaterra, onde nasceu o filho, William, morto aos 3 anos. De todos os filhos do casal, somente um sobreviveu.

A sombra do monstro A história de Frankenstein começou no Verão de 1816, quando Mary e Shelley reuniram-se com Claire Clairmont e Lord Byron em Genebra (Suíça). Ela aceitou o desafio, proposto por Byron, para escrever a mais terrível história de fantasmas. Com o encorajamento do marido, completou o romance em um ano. Durante o período em que permaneceu em Villa Diodati, ela foi uma ouvinte silenciosa dos debates entre o marido e Byron sobre o galvanismo, conjunto de fenômenos relacionados com a geração de correntes elétricas por meios químicos, muito em voga na época. Isso porque, na Universidade Eton, Shelley havia se interessado pelas experiências de Luigi Galvani com choques elétricos para movimentar os músculos de rãs mortas. É possível que seu professor, James Lind, tenha demonstrado a técnica a Shelley, influenciando diretamente na criação de Frankenstein. O fato é que ela nunca admitiu isso, declarando várias vezes que tirou a história de um sonho. Além de O último homem e Frankenstein, Mary Shelley assinou ainda outros 30 títulos. Nenhum deles obteve o mesmo sucesso do livro de estréia. *** Frank em versão light Frankenstein não é somente um dos maiores clássicos da literatura de horror, mas também eterno em seus questionamentos filosóficos sobre a existência, provocando questões essenciais sobre as relações de poder entre iguais e diferentes, o poder da humanidade sobre a natureza, o valor da amizade e a ascensão e queda do homem comum. Apesar dos temas não serem de digestão tão fácil, a saga da criatura desenvolvida a partir de restos de cadáveres sempre atingiu leitores de todas as idades. Especialmente os jovens, que têm agora uma nova versão mais light, adaptada por Leonardo Chianca, com ilustrações de Guazzelli. Resumido mas sem perder a essência, o livrinho narra as angústias do médico Victor Frankenstein, que dedicou o início de sua carreira a testar os limites da mortalidade. Brincou de Deus e construiu um ser horrendo, fadado à eterna solidão. Em Frankenstein, ou o moderno Prometeu (título original da obra), escrito há quase 200 anos e ainda considerado o primeiro romance misto de terror e ficção científica da história da literatura, o que se vê é uma criatura desesperada por companhia e interação com a raça humana. Vingativa quando percebe que não terá nem uma coisa nem outra. *** FICHA Livro: O último homem Autora: Mary Shelley Editora: Landmark Preço: R$51 (496 páginas) Livro: Frankenstein Autora: Mary Shelley Adaptação: Leonardo Chianca Ilustrações: Guazzelli Editora: Difusão Cultural do Livro Preço: R$21 (112 páginas) ”

CORREIO DA BAHIA