“por William Costa Os jornais noticiam todas as manhãs centenas ou milhares de mortes no mundo inteiro. A singularidade das ocorrências nutre o espetáculo diário da mídia e implode momentaneamente a frialdade da alma deste terceiro milênio, despertando seus olhos opacos para o drama humano, que não ocorre num planeta distante de uma galáxia qualquer, mas ali mesmo, na esquina da rua onde mora o corpo que lhe dá guarida. As mortes silenciosas, anônimas, resignadas, embora não menos dolorosas, não interessam aos jornais. São exatamente essas mortes não catalogadas – que tanto podem acontecer no pesadelo dos casebres africanos, como na insanidade dos hospitais públicos brasileiros -, que me comovem e me fazem lembrar, sempre, o poeta John Donne. Já perdi a conta, inclusive, dos textos que escrevi citando os versos do metafísico inglês. Alguns versos de “”Meditação XVII””, de Donne, os mesmos que inspiraram o escritor estadunidense Ernest Hemingway a escrever um de seus mais famosos romances, “”Por Quem os Sinos Dobram”” (relato pungente sobre a Guerra Civil Espanhola), são os meus preferidos. Recordarei mais uma vez os seus argumentos poéticos, indeléveis palavras escritas sob o fogo do amor ao próximo: Nenhum homem é uma ilha, completa em si mesma, todo homem é um pedaço do continente, uma parte da terra firme. Se um torrão de terra for levado pelo mar, a Europa fica menor, como se tivesse perdido um promontório, ou perdido o solar de um teu amigo, ou o teu próprio. A morte de qualquer homem diminui a mim, porque na humanidade me encontro envolvido; por isso, nunca mandes indagar por quem os sinos dobram; eles dobram por ti. Há, no entanto, outro motivo especial para trazer Donne à tona. A Editora Landmark lançou agora em abril a primeira edição brasileira bilìngüe das 23 meditações do poeta inglês, traduzidas por Fábio Cyrino. Na opinião do tradutor, a importância de Donne será apresentada finalmente ao público leitor brasileiro. É uma nova chance de mergulhar em um universo pontuado pelas reflexões do autor sobre a perenidade da vida e a preparação do corpo e do espírito pra o encontro final com o criador. O poeta, prosador e clérigo Donne pertence à ilustre linhagem dos poetas barrocos, escola a que pertencem, também, no campo da poesia, o italiano Giambattista Marino e os espanhóis Luís de Gôngora e Francisco de Quevedo. Como já disse antes, seus textos têm estilo esmerado e linguagem ilustrada. Sua sintaxe é intensa – anda sempre de mãos dadas com as hipérboles -, sem descuidar das antíteses e dos hipérbatos. São muitos comuns, ainda, os vocativos e as repetições. Vítima de um mal gravíssimo, Donne registrava suas meditações como elos de uma cadeia maior, o livro “”Devoções para Ocasiões Emergentes””. Os textos foram publicados em 1624. Cyrino afirma que talvez o ponto mais marcante da literatura do século XVII ocorre quando o estilo de Donne muda de poesia amorosa para poesia secular e religiosa. Surgem, daí, conclusões filosóficas de grande impacto sobre o sentido da vida e da morte. Mas Donne não ocupava-se apenas de dores espirituais. O corpo feminino também lhe inflamou o coração, inspirando-lhe versos que não podem deixar de figurar em qualquer antologia de poesia amorosa ou erótica que reinvidique selo de qualidade. Recordemos alguns versos inolvidáveis de sua belíssima “”Elegia: Indo para o leito””: Deixa que minha mão errante adentre. Atrás, na frente, em cima em baixo, entre. Minha América! Minha terra à vista. Reino de paz, se um homem só a conquista. Minha mina preciosa, meu império, feliz de quem penetre o teu mistério! Liberto-me ficando teu escravo; onde cai minha mão, meu selo gravo. Nudez total! Todo prazer provém de um corpo (como a alma sem corpo) sem vestes. As jóias que a mulher ostenta são como as bolas de ouro de Atlanta: o olho de tolo que uma gema inflama ilude-se com ela e perde a dama. Como encadernação vistosa, feita para iletrados, a mulher se enfeita; mas ela é um livro místico e somente a alguns (a que tal graça se consente) é dado lê-la. Eu sou um que sabe. ”
O NORTE, DE JOÃO PESSOA