“Por Alfredo Monte
Abordando geralmente gente pronvinciana, com interesses limitados e pequenas intrigas, é impressionante como Jane Austen desperta interesse e, segundo os livreiros, mantém invejável vendagem para quem morreu há quase 200 anos (em 1817). O recente fenômeno de “”Persuasão””, até então um dos seus livros menos conhecidos, mostrou isso. Nem Dickens, que há poucas décadas era gênio inglês e universal do século 19, é agora páreo para a autora de “”Emma””. É a popularidade unida à genialidade.
“”Orgulho e Preconceito”” reaparece agora em edição bilíngüe e bem cuidada. O trunfo dessa obra-prima de 1813 é sua heroína Elizabeth Bennet. Ela pertence a uma família com muitas filhas (cinco) todas sem dote, e cuja propriedade, com a morte do preguiçoso pai, passará para um distante e insuportável parente masculino, Mr. Collins (o qual, a certa altura da trama, resolve pedir a mão de Elizabeth, como se fosse um grande favor que fizesse a ela, e na mente de todos era mesmo): “”A senhora deve levar em conta que, apesar dos seus múltiplos atrativos, nada garante que outra proposta de casamento lhe seja feita algum dia””.
Assim como o Machado de Assis de “”A Mão e a Luva”” (um romance que poderia ter sido assinado por Austen), é implacável a precisão e lucidez com que ela caracteriza uma sociedade em que cada um é prisioneiro da sua condição social e sexual, em que o mais rasteiro cálculo materialista dita as regras, e que talvez seja (ao contrário do que se pensa) menos hipócrita do que a nossa, regida da mesma forma, porém colocando em prática outros discursos.
Quem tem perfeita consciência disso é Charlotte, a melhor amiga de Elizabeth, que acaba casada com o tal Mr. Collins: “”O casamento era ainda a forma mais agradável de se preservar da necessidade””.
O charme do enredo vem , com certeza, da transformação dos sentimentos mútuos entre Elizabeth e o a princípio antipático Mr. Darcy. Os diálogos entre ambos são páreos para Shakespeare das melhores comédias dramáticas, como “”O Mercador de Veneza”” e “”Como Gostais””, que têm heroínas carismáticas também, Pórcia e Rosalind.
Quase rouba a cena o irônico e indolente pai dela, Mr. Bennet, que só faz a filha sofrer porque é um péssimo marido, cáustico e desdenhoso. Entretanto, só o amor de filha perdoaria uma mãe tão chata, que merece uma tirada como a seguinte, resposta à sua queixa da pouca compaixão do esposo pelos seus pobres nervos: “”Está enganada, minha cara. Tenho um alto respeito pelos seus nervos. São meus velhos amigos. Ouço a mencioná-los com consideração há pelo menos vinte anos””.
Quando será que relançarão “”Mansfield Park””, a única grande obra de Austen, que há anos está desaparecida das livrarias? Aí o leitor verá um espaço narrativo mais reduzido e concentrado ainda (uma propriedade), e o lado mais angustiado e denso do universo austeniano, sem o anteparo da espiritualidade. Que, no entanto, é sempre bem-vinda.”
A TRIBUNA, DE SANTOS (SP)