“Chega às livrarias edição bilíngue de “A Abadia de Northanger”, romance da escritora inglesa Jane Austen
Se a primeira impressão é a que fica, não há muito a se esperar de Catherine Morland. Logo na primeira frase do romance que conta sua história, a autora diz: “Ninguém que tenha visto Catherine Morland em sua infância poderia supor que ela tivesse nascido para ser uma heroína”. Não satisfeita, ainda a descreve como pouco prendada e “ocasionalmente estúpida”, ao menos até chegar o tempo de encaracolar os cabelos e ansiar por bailes, quando passou a ler os livros que “as heroínas devem ler”, perdeu um pouco da timidez e tornou-se “quase encantadora”.
Mas basta saber que a mocinha tão cruamente descrita é protagonista de A Abadia de Northanger, de Jane Austen (1775 – 1817) que acaba de ganhar edição bilíngue, ainda que com uma tradução para o português que deixe a desejar, para deduzir que Catherine e sua aparente inaptidão para o heroísmo fazem parte de mais um irônico retrato da sociedade inglesa e seus conflitos de classe no início do século 19.
Tudo bem, um retrato nem de longe tão delicioso, se comparado aos clássicos austinianos Orgulho e Preconceito e Razão e Sensibilidade. A Abadia de Northanger (Landmark, 288 páginas, preço médio de R$ 41), livro que andava difícil de se encontrar em português, segue o script básico da obra de Jane Austen, apontada como uma das escritoras mais importantes da língua inglesa: a trama acompanha uma garota em busca do amor e, neste percurso, revela o que há de ridículo, pomposo, terno, inocente e cruel por trás das mesuras e rapapés da época. Mas, se a saga desta vez carece de um conflito interessante, diverte ao desnudar seus personagens – a começar pela mocinha. Desta vez, a autora não faz uso da perspicácia da heroína – como os comentários sagazes de Elizabeth Bennet ou o bom senso a toda prova de Elinor Dashwood –, mas justamente da ingenuidade de Catherine e de tudo aquilo que custa a ver. (A melhor amiga não é interesseira, e se o amor dela arrefece ao descobrir a modesta renda do noivo é apenas por que julgou mal os próprios sentimentos…)
O romance também revela uma Jane Austen muito mais presente na narração, fazendo uso da história para uma apaixonada defesa do gênero romance – inclusive para cavalheiros! –, dedicando quatro capítulos a um deboche dos excessos do romance gótico e ainda brindando o leitor com divertidas interferências. Depois de dizer que a afeição do mocinho fundamentava-se principalmente no fato de Catherine gostar dele, comenta: “É uma nova circunstância em romance, reconheço (…), mas, se for tão novo para a vida comum, o crédito de uma louca imaginação será, pelo menos, totalmente meu.”
A Abadia de Northanger foi o terceiro romance escrito por Jane, que vendeu os direitos da obra então intitulada Susan em 1803 por 10 libras. O editor, contudo, não lançou o livro nem deu maiores explicações. Em 1816, o irmão de Jane, Henry, readquiriu os direitos sobre Susan, e a autora revisou a história e rebatizou a heroína como Catherine. Mas morreu antes da publicação do livro, no ano seguinte, em conjunto com a novela Persuasão. Assim chegou ao público a história da jovem filha de um clérigo (como a própria Jane) que, em visita ao balneário de Bath (local frequentado pela família da escritora) testa seus parcos conhecimentos sobre o mundo e as pessoas enquanto cai de amores por um distinto rapaz e recebe o convite para visitar a assustadora, pensa ela, abadia da família dele.
Na primeira edição, havia um pedido de desculpas pelo hiato de 13 anos entre a escritura e a publicação da obra, já que, durante este período, “lugares, costumes, livros e opiniões passaram por consideráveis mudanças”.
De lá para cá, passados dois séculos, os costumes, de fato, mudaram radicalmente, mas o valor e a atualidade da literatura de Jane Austen permanecem. Basta ver como a obra da autora ainda inspira o cinema e a TV: foram 44 adaptações desde 1938, sem contar outras duas que estão por vir. Essa atemporalidade se deve à essência dos romances de Austen em que, descontados pruridos e galanteios datados, revela-se o que há de mais humano e perene nas idiossincrasias amorosas e no jogo de interesses em sociedade. Sem contar as deliciosas ironias que, mesmo em livros sempre predestinados aos finais felizes, não poupam sequer o amor. Já foi dito que Jane não deixava heroína sem par justamente para viver na ficção aquilo que ela não teve em vida – a escritora morreu solteira, aos 41 anos. Essa seria uma versão romântica em que Catherine adoraria acreditar.
PATRÍCIA ROCHA “JORNAL ZERO HORA (RS)