“””Sonetos Completos de William Shakespeare””, edição bilíngue publicada pela Editora Landmark, em tradução do poeta Vasco Graça Moura, selecionado como uma das traduções disponíveis em língua portuguesa na reportagem “”Shakespeare Interativo””
Obra recém-lançada convida o leitor a se aventurar na tradução do rico vocabulário dos sonetos do britânico
Porto Alegre – Vamos começar tirando de vez do caminho a frase que todo texto acerca de tradução se vê quase constrangido a usar: sim, “o tradutor é um traidor”, verter uma obra artística para outro idioma é sim trair um ou mais de seus ricos elementos: o ritmo, o sentido, a polissemia, a rima, algo vai ser negligenciado, ainda mais em se tratando de Shakespeare. Traduzir é trair, mas a própria proposta de Sonetos de Shakespeare (Objetiva, 124 páginas) é reunir no mesmo volume tanto os que pulam a cerca na maior discrição quanto os que vão passear no brique de mãos dadas com a filial.
Sonetos de Shakespeare carnavaliza a obra do bardo para tirar dela certa aura poeirenta do monumento literário que ela não deixa de ser – embora não seja só isso. Primeiro, temos o soneto original, no inglês elizabetano que às vezes representa dificuldade mesmo para os falantes contemporâneos do idioma. Depois, as traduções perpetradas pelos convidados de Jorge Furtado – a lista mistura amigos, atores, colegas e escritores com quem Furtado já trabalhou e tradutores conceituados de Shakespeare como Beatriz Viégas-Farias e Ivo Barroso. Entre uma coisa e outra, uma página com linhas em branco para que o leitor também se aventure no que Furtado define como um passatempo mais divertido que o sudoku.
Barroso, especialista na tradução dos sonetos shakespeareanos, traduz o de nº 77, e é de sutileza ímpar ao buscar as equivalências no português dos recursos poéticos do original, como transformar “the surly sullen bell” (algo como “o sino rude e mal-humorado”) em “surdo sino”. O mesmo soneto também é traduzido pelo ator Wagner Moura, que, pouco dotado para preservar a musicalidade do poema, prioriza soluções mais fiéis ao sentido geral do verso, e faz de “When I, perhaps, compounded am with clay”, “Quando eu, quem sabe já lama for” (Barroso traduz o mesmo trecho como “Quando for minha carne consumida”). Ah, sim, e Moura aposta em uma dicção mais coloquial, até grosseira (o “surdo sino” já mencionado vira “sino escroto”, por exemplo).
Não é o único a subverter em busca de um olhar mais leve sobre Shakespeare. No soneto nº 22, Giba Assis Brasil compõe uma tradução sacana para a reflexão de um amante sobre envelhecimento e morte. As irmãs Fernanda e Mariana Verissimo explodem a moldura clássica dos 14 versos que definem o que é um soneto, transformando sua tradução do nº 19 (sobre o conflito entre a eternidade do verso e a inexorabilidade do tempo) em poema de 28 versos com alusões a recursos contemporâneos da luta contra o envelhecimento, como a cirurgia plástica.
Sonetos de Shakespeare, assim, se mostra um livro que desperta uma reflexão sobre a própria arte de traduzir. Quando mais de um convidado se debruça sobre um mesmo poema, é como se parissem duas obras diversas – e com muitas ou poucas diferenças do original. Afinal, traduzir e coçar, é só começar.
– Os Sonetos Completos. Tradução de Vasco Graça Moura, edição bilingue, com todos os 154 sonetos. Editora Landmark, 2005.”JORNAL PIONEIRO, DE CAXIAS DO SUL (RS)