“Tendo como motivo aparente a montagem de um quebra-cabeça que entrelaça espionagem e narrativa policial, Joseph Conrad mergulha na condição humana, apontando as fronteiras que se estendem entre a essência e a aparência, bem como os verdadeiros motivos por que se rege a engrenagem social

A partir de um ponto de vista em terceira pessoa, conduzido por um narrador onisciente e também com marcas de intrusão, esse romance apresenta como espaço e tempo a cidade de Londres no último quartel do século XIX – um ponto convergente para os exilados polícos daquele período. Assim, o leitor entra, de chofre, em contato com a personagem Verloc – anarquista no exílio, que serve a interesses estrangeiros bem como faz também as vezes de informante para a polícia londrina. Conhece a pequena loja que lhe serve de disfarce e os membros da família, cuja descrição funde traços físicos e psicológicos, com laivos de humor e de ironia, bem ao gosto dos ficcionistas que dialogam com as técnicas realistas na composição de tipos ou de espaços.

Levando-se em conta os traços de estilos, a composição desse romance alcança um ponto alto no momento em que une à narração os fios descritivos, delineando, assim, o corpo vivo do cotidiano da cidade: “”As polidas aldravas das portas reluziam até onde os olhos podiam ver, as janelas limpas brilhavam com um fulgor escuro e opaco. E tudo estava sossegado. Mas um carrinho de leite chacoalhava ruidosamente pelo distante horizonte; um entregador de carnes, guiando com a nobre imprudência de um cocheiro nos Jogos Olímpicos, se lançou sobre a esquina, sentado bem acima de um par de rodas vermelhas””. E não falta um olhar culpado de um gato que emerge do calçamento.

A trama começa a ganhar fôlego, em relação ao tecido dramático, quando Verloc é chamado à presença do novo embaixador. O senhor Vladimir, Primeiro Secretário, tinha ares de um homem tranquilo e cordial. Por conta desses traços, podia desenvolver com plenitude uma de suas habilidades: a investigação das ações alheias, como olhamos profundamente aquele que não nos vê. Verloc, em frente ao Primeiro Secretário, ouvia-lhe as observações, num silêncio terrível, imobilizante. E, ante a surpresa do discurso, ficou demasiadamente chocado, sem forças sequer para qualquer protesto, por mais tênue que este pudesse ser.

Vladimir pronunciava calmamente o seu desejo: “”Uma série de atentados””. Não era necessário que fossem atentados sangrentos, mas deveriam ser suficientemente assustadores. E de modo incisivo, judicioso: “”Eficazes. Que sejam dirigidos contra edifícios, por exemplo. Qual é o fetiche do momento, que toda a burguesia reconheceria, hein, Senhor Verloc?””. Ressaltou, depois, que nada contra a realeza ou a religião – portanto, o palácio e as igrejas deveriam ser deixados de lado. Onde então deveria ele agir? Exatamente, nos prédios das embaixadas, uma vez que, nesse caso, a repercussão estaria absolutamente garantida.

Agora, agentes secretos, policiais, diplomatas, pessoas anônimas ou figuras da política, toda essa gente irá percorrer o caleidoscópio da sociedade londrina – esta, com seus gestos calculados, premeditadamente polidos, falsifica a identidade, e, com isso, o que é mentira parece verdade, e o que é verdade atrai sobre si imensa desconfiança. Joseph Conrad à semelhança do ourives com o seu cinzel raspa a crosta das relações humanas, despindo o corpo das práticas terroristas por um lado, por outro mostra a corrosão da sociedade moderna que transformava rapidamente.

Essa edição de “”O Agente Secreto”” é bilíngue; desse modo, permite ao leitor comprovar a propriedade da tradução; esta converva os movimentos do texto origial, a cadência de suas frases, o ritmo da narrativa, em que o prosaico é, constantemente, tocado pelo poético: “”… e terrível, na simplicidade de sua ideia, que convocava a loucura e o desespero para regenerar o mundo. Ninguém olhava para ele. E ele prosseguiu, inesperada e fatalmente, seguindo como uma peste em uma rua cheia de homens””. Encerra-se assim uma narrativa que supera a simples estrutura de um thriller e se converte numa singular construção literária.

CARLOS AUGUSTO VIANA: EDITOR ”

JORNAL DIÁRIO DO NORDESTE